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Processo Civil - CPC 2015

O novo CPC e a velha última flor do lácio

Autores: Jorge Amaury Maia Nunes e Guilherme Pupe da Nóbrega
Publicado no site em: 05 de agosto de 2016

Este não é um texto escrito por gramático, professor de língua portuguesa, ou coisa semelhante, mas, sim, por quem procura não cometer agressões à última flor do Lácio, cada vez mais inculta e menos bela, embora sejam inevitáveis, aqui e ali, alguns escorregões próprios à natureza humana.
Assim que veio a lume o texto do novo Código de Processo Civil (ainda quando em segundo exame pelo Senado), a primeira leitura que dele fiz indicava a existência de atentados à língua. Alguns eram muito graves, fato que impôs a realização de glosas, parágrafos (do grego paragraphos, escrito ao lado), quando por outro motivo não fosse, em acatamento à advertência de Ruy sobre a linguagem das leis e seu caráter monumental. Disse o genial baiano:

Quando a phrase é simples e pura, atravez dela penetra direitamente a inteligência ao encontro do pensamento escripto. Mas, se ele se desvia da expressão natural e correcta, forçosamente se ha-de transformar a leitura em tedioso esforço de critica e decifração, a que a redação das leis não deve expôl-as, se as quer entendidas e obedecidas.

Aos meus primeiros reparos, suppuz não passasse de leves e raras jaças na superfície de imensa gemma despolida. Mas tanto se repetiam, que principiei a assignalal-as para orientação minha, e, afinal, não sei se houve página da brochura, onde não tivesse que notar. Comprehendi então que ao trabalho jurídico, vasto e notável, bem que defeituoso e incompleto, da cammara trienal, estava por dar ainda, quasi inteiramente, a mão d’obra literaria. A revisão pelo Senado não poderia evitar esse acréscimo de tarefa, se quisesse produzir obra, que servisse ao paiz, e honrasse o congresso.” (Excerto do Parecer do Senador Ruy Barbosa sobre a redação do Projeto de Código Civil da Câmara dos Deputados – mantida a grafia da época.)

Muito se falou e escreveu sobre o Parecer de RUY, lavrado em escassos três dias, indicando os percalços vernaculares que sofria o projeto de Código Civil baseado no trabalho de Clóvis Bevilacqua, discutido e aprovado pela Câmara dos Deputados. Inegável, porém, o apuro que pretendeu emprestar ao monumento legislativo o baiano ilustre, nem sempre bem aceito em seu intento pelo parlamento da época.

Fico a imaginar qual seria o comportamento de Ruy, como parlamentar na atual legislatura, com o encargo de examinar o novo Código de Processo Civil. Não sei o que teria pensado e escrito o parlamentar, mas, certamente, palavras de desconsolo jorrariam. O esforço de crítica e decifração seriam intensos. Sem o intuito de emular o erudito parlamentar e jurista, anotei alguns dos principais equívocos perpetrados pelo legislador processual. Reproduzo o texto legal e, em seguida, aponto a cincada.

Art. 56. Dá-se a continência entre 2 (duas) ou mais ações quando houver identidade quanto às partes e à causa de pedir, mas o pedido de uma, por ser mais amplo, abrange o das demais. (o equívoco está em negrito)

Com as licenças de estilo, ou bem o legislador cuida de tudo no tempo presente, ou vai para o futuro: “Dá-se a continência.... sempre que há”, ou: “dar-se-á a continência... quando houver.

Ao inaugurar o Livro IV, que cuida dos atos processuais, o legislador saiu-se com esta pérola:

Art. 188. Os atos e os termos processuais independem de forma determinada, salvo quando a lei expressamente a exigir, considerando-se válidos os que, realizados de outro modo, lhe preencham a finalidade essencial. (o equívoco está em destaque)

O correto é: quando a lei expressamente o exigir. Deveras, não importa que a referência do “o” seja à forma determinada (no feminino). Observe-se, a respeito do tema, a lição do mestre Napoleão Mendes de Almeida: “O artigo o funciona também como demonstrativo neutro e, em tal caso, pode substituir tanto um nome quanto um verbo, tanto um adjetivo quanto, ainda, uma oração inteira.”

... (omissis)

“Sois espiã? – Não o sou” (não sou isso, isto é, espiã). O itálico já estava no original.1

Elucidativo é, também, este trecho de Evanildo Bechara: “devemos recorrer à forma flexionada somente quando o exigir a clareza.”

Também o § 4º do art. 95 contém impropriedade. Veja-se:

Art. 95.....
§ 4º Na hipótese do § 3º, o juiz, após o trânsito em julgado da decisão final, oficiará a Fazenda Pública para que promova, contra quem tiver sido condenado ao pagamento das despesas processuais, a execução dos valores gastos com a perícia particular ou com a utilização de servidor público ou da estrutura de órgão público. Se o responsável pelo pagamento das despesas for beneficiário de gratuidade da justiça, observar-se-á o disposto no art. 98, § 2º.

Lançou-se o verbo oficiar como se fora transitivo direto. Ocorre que, segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea (2001), da Academia das Ciências de Lisboa, um dos sentidos do verbo oficiar é «dirigir ou mandar um ofício», «dirigir uma comunicação ou carta oficial», do que se infere que «se constrói com sujeito agente e com complemento, destinatário, da forma a + nome humano» (Francisco da Silva Borba, Dicionário Gramatical de Verbos do Português Contemporâneo, 1991, p. 954) como se pode ver em: «Vamos oficiar ao vice-presidente da Comissão de Preços», «O promotor intervém e afirma que vai oficiar à Procuradoria-Geral da Justiça, pedindo instauração do inquérito criminal».

Por ser transitivo direto, esse verbo implica a construção «oficiar a ou oficiar-lhe» (Celso Pedro Luft, Dicionário Prático de Regência Verbal, São Paulo, Ática, 2003, p. 383), uma vez que significa «dirigir ofício ou comunicar por ofício (a alguém): O secretário oficiou ao governador que a escola agradecia a sua ajuda através de subvenções» (idem).

O interessante é que, na parte final do § 6º do art. 77, o legislador processual acertou a regência, como se percebe da redação que lhe emprestou: “Aos advogados públicos ou privados e aos membros da Defensoria Pública e do Ministério Público não se aplica o disposto nos §§ 2º a 5º, devendo eventual responsabilidade disciplinar ser apurada pelo respectivo órgão de classe ou corregedoria, ao qual o juiz oficiará.”

No art. 122, há outro equívoco, um pouco mais sutil:

Art. 122. A assistência simples não obsta a que a parte principal reconheça a procedência do pedido, desista da ação, renuncie ao direito sobre o que se funda a ação ou transija sobre direitos controvertidos.

Há, aí, um a espécie de pleonasmo. Transação já supõe direitos controvertidos. Talvez pudesse ser dito: “transija sobre direitos patrimoniais”.

No art. 143, comparece outro equívoco, da mesma natureza do que acaba de ser apontado. Disse o legislador:

Art. 143. O juiz responderá, civil e regressivamente, por perdas e danos quando:

I – no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude;

Pergunta: existe alguma fraude sem dolo? De fato, parece-me que dolo é inerente à fraude perpetrada pelo juiz. Bastaria dizer: I – no exercício de suas funções, proceder com dolo.

É certo que outros problemas há (ênclises duvidosas, ausências de paralelismo e coisas do gênero), mas esses são os mais gritantes. « Voltar