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Processo Civil - CPC 2015

A ressignificação do prequestionamento na sistemática dos precedentes: breves reflexões sobre a relevância do instituto diante da função nomofilática dos Tribunais

Autores: Marcelo Mazzola e Humberto Dalla Bernardina de Pinho
Data de publicação: 25 de setembro de 2016
  Afirma-se que o prequestionamento tem sua origem na Lei Judiciária norte-americana (Judiciary Act), de 24/9/1789, diploma que criou o recurso de writ of error.1

No Brasil, o tema, ainda que nas entrelinhas, foi regulado pela primeira vez na Constituição de 18912, que, em seu artigo 59, III, § 1º, alínea "a", dispunha ser cabível o recurso extraordinário "quando se questionar sobre a validade, ou a aplicação de tratados e leis federais, e a decisão do Tribunal do Estado for contra ela".

Há quem entenda que tal preceito acabou sendo repetido na reforma de 1926, bem como nas Constituições de 1934, de 1937 e de 1946.3

Em 1963, o STF editou os enunciados das súmulas 282 e 3564, que permanecem hígidos até hoje. Quatros anos depois, com a CF/67, alguns juristas5 passaram a sustentar a desnecessidade do prequestionamento, com base em discussões meramente semânticas.

O prequestionamento sobreviveu às críticas e, em 1988, a Constituição "cidadã" o consagrou como requisito de cabimento dos recursos especial e extraordinário6, ao estabelecer que estes devem ser interpostos contra causas decididas em única ou última instância (arts. 102, III, e 105, III).

No decorrer do tempo, as cortes superiores proferiram decisões relativizando a necessidade de o tribunal inferior indicar o dispositivo legal pertinente, bastando que o tema tivesse sido suscitado pelo recorrente e enfrentado na decisão recorrida.7 Surgiu, assim, a ideia do prequestionamento implícito, que, aliás, continua sendo admitido pelo STJ8, diferentemente do STF9.

Esse tratamento diferenciado do STF na análise do prequestionamento tem relação direta com a forma de preenchimento do requisito em cada corte.

No âmbito da corte constitucional, ainda que o tribunal recorrido não enfrente o tema sob a ótica do dispositivo constitucional invocado, basta que o recorrente maneje embargos de declaração para que reste configurado o requisito do prequestionamento, à luz das Súmulas 282 e 356. Por outro lado, no plano do STJ, se o recorrente opuser embargos de declaração e mesmo assim o tribunal a quo não enfrentar a matéria infraconstitucional, o recorrente, na vigência do CPC/73, era obrigado a interpor seu recurso especial, com base no artigo 535, II, do aludido diploma, sob pena de incidência do enunciado da Súmula 211.10

O NCPC perdeu a oportunidade de avançar e regular com mais clareza o preenchimento do requisito do prequestionamento, inclusive como forma de equalizar os entendimentos das cortes superiores. De qualquer forma, cabe registrar que o novo diploma passou a admitir o prequestionamento ficto (art. 1.025)11. Explica-se: a partir de agora, se o tribunal recorrido não examinar o tema suscitado, basta que o recorrente apresente embargos de declaração, podendo o tribunal, caso "considere existentes erro, omissão, contradição ou obscuridade", julgar desde logo o processo (se não houver necessidade de produção de provas), aplicando o direito (art. 1.034). Tal sistemática esvazia, de certa forma, a Sumula 211 do STJ.

Outra novidade é que o voto vencido passa a fazer parte do acórdão de julgamento, inclusive para fins de prequestionamento (art. 941, § 3º), alteração positiva que ajuda a combater a jurisprudência defensiva e facilita a demonstração do prequestionamento.12 É que algumas vezes a questão de direito só é analisada com maior densidade no voto divergente.

Contudo, parece-nos que o momento é de se repensar a real utilidade do prequestionamento, na medida em que as cortes superiores passam a ter o papel primordial de buscar uma uniformização jurisprudencial13 cada vez mais intensificada.

Dessa forma, busca-se, inclusive, dar maior concretude a princípios constitucionais basilares, tais como a isonomia entre jurisdicionados que se encontrem em situação jurídica semelhante, a segurança jurídica e a duração razoável dos processos cujos recursos excepcionais versem sobre a mesma questão de direito.14

Nessa toada, os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente (art. 926), bem como observar as decisões do STF em controle concentrado de constitucionalidade; os enunciados de súmula vinculante; os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; os enunciados das súmulas do STF em matéria constitucional e do STJ em matéria infraconstitucional; e a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados (art. 927).

Na sistemática de precedentes, em que a maior preocupação é uniformizar e harmonizar o entendimento sobre "questões de direito"15, o prequestionamento, definitivamente, não pode ser compreendido como a obrigação da parte de demonstrar a vinculação do tema a determinado dispositivo legal ou constitucional (prequestionamento explícito ou numérico).

Os tribunais superiores não devem preocupar-se em perquirir se o tribunal recorrido analisou este ou aquele dispositivo, mas sim se analisou e enfrentou a questão de direito suscitada pela parte (o tema), violando ou não os precedentes das cortes.

A propósito, quando o relator seleciona recursos representativos da controvérsia (no caso de recursos especiais e extraordinários repetitivos, por exemplo), deve apenas identificar com precisão a questão a ser submetida a julgamento (art. 1.037, I, NCPC), e não especificar o artigo da Carta Magna ou da legislação federal capaz de dar lastro à apreciação do tema.16 Ou seja, o que importa, efetivamente, é a delimitação da questão de direito.

O mesmo raciocínio se aplica no Incidente de Resolução de Recurso Repetitivos (IRDR)17 e no Incidente de Assunção de Competência (IAC). No primeiro, a questão de direito se repete em muitos processos, existindo risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica, a justificar, portanto, a pacificação do tema. No segundo, constata-se a relevância de questão de direito, que, apesar de não se repetir em múltiplos processos, tem grande repercussão social.

Note-se, ainda, que, para efeito de repercussão geral, será considerada a existência ou não de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os interesses subjetivos do processo (art. 1.035, § 1º).

Nesse contexto, sobretudo dentro da sistemática dos precedentes, a aferição do prequestionamento não precisa refletir uma rígida correlação entre tema e dispositivo legal. Na verdade, o prequestionamento deve ser compreendido como o dever do recorrente de demonstrar que suscitou a questão de direito ao longo do processo e que a mesma foi apreciada pelo tribunal inferior, independentemente da menção ou citação de eventual dispositivo legal.

A observação é importante porque muitas vezes a questão de direito não tem relação direta com determinado dispositivo legal, podendo decorrer de uma intepretação sistemática de algumas normas18, ou mesmo da própria evolução jurisprudencial, fruto do amadurecimento da sociedade em relação a tema considerado relevante.

Não custa lembrar que o art. 10 do CPC/15 redimensiona o contraditório, estendendo-o também aos fundamentos jurídicos. Nessa mesma linha, o art. 357, § 2° permite que as partes, no momento do saneador, apresentem ao juiz proposta de delimitação das questões de fato e de direito. E, finalmente, do art. 489, inciso II e § 1°, inciso IV consta que “são elementos da sentença os fundamentos em que o juiz analisará as questões de fato e de direito”, não se considerando fundamentada a decisão que não enfrenta todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador. Nenhum desses artigos faz menção à necessidade da indicação do dispositivo legal, mas apenas ao fundamento de fato ou de direito.19

Essa nova percepção joga as sementes para uma verdadeira ressignificação do prequestionamento, tema que será explorado com mais profundidade em outro trabalho.

Em reforço a tudo isso, vale registrar que muitas súmulas e teses fixadas em julgamentos de recursos repetitivos não trazem, nos respectivos extratos, quaisquer dispositivos legais, estampando-se apenas a própria questão de direito decidida.

Dentro dessa ótica, não se afigura mais consentâneo com os paradigmas do CPC/2015 o entendimento consolidado do STJ de que, em caso de REsp interposto com base na alínea "c" do permissivo constitucional (dissídio jurisprudencial), o recurso não deve ser conhecido se o recorrente não indicar o dispositivo legal capaz de lastrear a divergência.

Parece-nos que, se o recorrente demonstrou que a questão de direito por ele suscitada foi efetivamente enfrentada pelo tribunal recorrido, mas em sentido diferente da interpretação conferida por outro tribunal, o recurso especial deve ser conhecido.

Primeiro, porque muitas das antigas formalidades – principalmente no âmbito das cortes superiores – foram suprimidas pelo NCPC20, valorizando-se o princípio da primazia de mérito (arts. 4º e 6º), que também pode ser invocado in casu.

Segundo, porque tal exigência – indicação do dispositivo legal – não tem previsão no CPC e tampouco consta do Regimento Interno do STJ. Aliás, muitas vezes a divergência sobre o mesmíssimo tema está assentada em fundamentos jurídicos distintos, inclusive de leis diferentes, dada a natureza da discussão (Código de Defesa do Consumidor x Lei dos Planos de Saúde; Código Civil x Lei de Direitos Autorais; Lei Antitruste x Lei de Propriedade Industrial, etc.). Ou seja, trata-se de ranço de uma jurisprudência defensiva totalmente incompatível com o sistema de precedentes (focado na harmonização da questão de direito).

Terceiro, porque, se o relator do STJ consegue identificar a questão de direito em discussão e percebe que a mesma foi decidida em descompasso com o paradigma, mesmo sem a indicação do artigo de lei, deveria, por uma questão de boa-fé e cooperação (arts. 5º e 6º), conhecer o REsp com base no dissídio para apreciar o tema.21 Ora, o que está em jogo é a segurança jurídica, a isonomia e possibilidade de julgamento do mérito, cânones do CPC/15 muito mais valiosos que a forma.

Claro que, se a fundamentação do REsp for deficiente e não houver a efetiva demonstração da divergência dentro dos parâmetros do CPC/15 (art. 1.029, § 1º) e do Regimento Interno do STJ (art. 255, § 1º), o recurso não deve ser conhecido, aplicando-se, inclusive, o enunciado da Súmula 284.

Agora, se a divergência sobre determinada questão de direito (prequestionada) estiver devidamente demonstrada, deve o STJ dar prosseguimento ao recurso, podendo o ministro relator, inclusive, caso constate eventual déficit de fundamentação, intimar qualquer das partes para se manifestar a respeito, à luz do já referido artigo 10 do CPC/15, nos termos do artigo 255, § 5º, do RISTJ.22 Afinal, o foco deve ser no objetivo (uniformizar), e não nos meios (viabilizar o acesso).

Em recente julgamento, o Ministro Napoleão Maia do STJ fez uma severa crítica às chamadas "formalidades" processuais, destacando que "só existe uma decisão afirmando ser exigível a indicação de dispositivo legal" no caso do REsp interposto com base em dissídio jurisprudencial (REsp 1.346.588) e que todas as posteriores apenas fazem referência a essa, sem acréscimo de fundamentação ou doutrina23. Tal assertiva demonstra que nossa inquietude também é sentida pelos próprios julgadores.

Em resumo, considerando a sistemática dos precedentes do NCPC, a bussola interpretativa de nossos tribunais deve estar calibrada para harmonizar questões de direito, e não fomentar incongruências, cultuando formalidades.

Na aferição do prequestionamento, deve-se valorizar muito mais o debate sobre o tema e a chance de pacificar os entendimentos, do que a catalogação dos dispositivos. Não faz mais sentido restringir a discussão a filigranas processuais, suscitando, por exemplo, ausência de vinculação/correlação entre a questão de direito decidida e determinados dispositivos legais, com o único objetivo de fulminar recursos, se a função das cortes superiores é, acima de tudo, garantir a isonomia e a segurança jurídica, em benefício de toda a coletividade. « Voltar